segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Que é Esclarecimento - Kant

Que é esclarecimento [<Aufklärung>]?

Que é esclarecimento ? por Immanuel Kant

Esclarecimento  é a saída do homem de sua menoridade,
da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa
menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de
decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude!
Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento
.

A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos
homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha
(naturaliter maiorennes), continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a
vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se
constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as
vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um
médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo.

Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar;
outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da
humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e
além do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu cargo a
supervisão dela.
Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e
preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas a fim de não ousarem dar um
passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-lhes, em
seguida, o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade
não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas
quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar tímido o indivíduo e atemorizá-lo em
geral para não fazer outras tentativas no futuro.

É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da
menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a
ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca
o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos
mecânicos do uso racional, ou, antes, do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de
uma perpétua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto
inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este
movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela
transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma
marcha segura.
Que, porém, um público se esclareça [<aufkläre>] a si mesmo é
perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável.
Pois, encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até
entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de terem sacudido de si
mesmos o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação
racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo.

O interessante nesse caso é que o público, que anteriormente foi conduzido por eles a este
jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele, quando é levado a se rebelar por
alguns de seus tutores que, eles mesmos, são incapazes de qualquer esclarecimento
. Vê-se assim como é prejudicial plantar preconceitos, porque terminam
por se vingar daqueles que foram seus autores ou predecessores destes. Por isso, um
público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento . Uma
revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de
lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar.
Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a
grande massa destituída de pensamento.

Para este esclarecimento , porém, nada mais se exige senão
LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a
saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém,
exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas
exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama:
não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto
quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui por toda a parte a limitação
da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento ? Qual
não o impede, e até mesmo favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser
sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento  entre os homens. O
uso privado da razão pode, porém, muitas vezes, ser muito estreitamente limitado, sem
contudo por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento .

Entendo, contudo, sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer
homem, enquanto SÁBIO, faz dela diante do grande público do mundo letrado.
Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público
ou função a ele confiado. Ora, para muitas profissões que se exercem no
interesse da comunidade, é necessário um certo mecanismo, em virtude do qual alguns
membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para
serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades
públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos
tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Na medida, porém,
em que esta parte da máquina se considera ao mesmo tempo membro de uma
comunidade total, chegando até a sociedade constituída pelos cidadãos de todo o
mundo, portanto na qualidade de sábio que se dirige a um público, por meio de obras
escritas de acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar, sem que
por isso sofram os negócios a que ele está sujeito em parte como membro passivo.
Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a que seu superior deu uma ordem,
quisesse pôr-se a raciocinar em voz alta no serviço a respeito da conveniência ou da
utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas, razoavelmente, não se lhe pode impedir,
enquanto homem versado no assunto, fazer observações sobre os erros no serviço
militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue.

O cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos que sobre ele recaem;
até mesmo a desaprovação impertinente dessas obrigações, se devem ser pagas por ele, pode ser
castigada como um escândalo (que poderia causar uma desobediência geral).
Exatamente, apesar disso, não age contrariamente ao dever de um cidadão se, como
homem instruído, expõe publicamente suas idéias contra a inconveniência ou a injustiça
dessas imposições. Do mesmo modo também o sacerdote está obrigado a fazer seu
sermão aos discípulos do catecismo ou à comunidade, de conformidade com o credo da
Igreja a que serve, pois foi admitido com esta condição. Mas, enquanto sábio, tem
completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as
suas idéias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo
naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição da essência da
religião e da Igreja.

Nada existe aqui que possa constituir um peso na consciência. Pois
aquilo que ensina em decorrência de seu cargo como funcionário da Igreja, expõe-no
como algo em relação ao qual não tem o livre poder de ensinar como melhor lhe pareça,
mas está obrigado a expor segundo a prescrição de um outro e em nome deste. Poderá
dizer: nossa igreja ensina isto ou aquilo; estes são os fundamentos comprobatórios de
que ela se serve. Tira então toda utilidade prática para sua comunidade de preceitos que ele
mesmo não subscreveria, com inteira convicção, em cuja apresentação pode contudo se
comprometer, porque não é de todo impossível que em seus enunciados a verdade esteja
escondida. Em todo caso, porém, pelo menos nada deve ser encontrado aí que seja
contraditório com a religião interior. Pois se acreditasse encontrar esta contradição não
poderia em sã consciência desempenhar sua função, teria de renunciar. Por conseguinte,
o uso que um professor empregado faz de sua razão diante de sua comunidade é
unicamente um uso privado, porque é sempre um uso doméstico, por grande que
seja a assembléia. Com relação a esse uso ele, enquanto padre, não é livre nem tem o
direito de sê-lo, porque executa uma incumbência estranha. Já como sábio, ao contrário,
que por meio de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, o mundo, o sacerdote,
no uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de fazer uso de sua própria
razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo (nas coisas
espirituais) deverem ser eles próprios menores constitui um absurdo que dá em
resultado a perpetuação dos absurdos.

Mas não deveria uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma
assembléia de clérigos, ou uma respeitável classe (como a si mesma se denomina entre
os holandeses) estar autorizada, sob juramento, a comprometer-se com um certo credo
invariável, a fim de por este modo de exercer uma incessante supertutela sobre cada um
de seus membros e por meio dela sobre o povo, e até mesmo a perpetuar essa tutela?
Isto é inteiramente impossível, digo eu. Tal contrato, que decidiria afastar para sempre
todo ulterior esclarecimento  do gênero humano, é simplesmente nulo e
sem validade, mesmo que fosse confirmado pelo poder supremo, pelos parlamentos e
pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar
a seguinte em um estado em que se torne impossível para esta ampliar seus
conhecimentos (particularmente os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar
mais no caminho do esclarecimento . Isto seria um crime contra a
natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço. E a
posteridade está portanto plenamente justificada em repelir aquelas decisões, tomadas
de modo não autorizado e criminoso. Quanto ao que se possa estabelecer como lei para
um povo, a pedra de toque está na questão de saber se um povo se poderia ter ele
próprio submetido a tal lei. Seria certamente possível, como se à espera de lei melhor,
por determinado e curto prazo, e para introduzir certa ordem. Ao mesmo tempo, se
franquearia a qualquer cidadão, especialmente ao de carreira eclesiástica, na qualidadede sábio, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas, seus reparos
a possíveis defeitos das instituições vigentes. Estas últimas permaneceriam intactas, até
que a compreensão da natureza de tais coisas se tivesse estendido e aprofundado,
publicamente, a ponto de tornar-se possível levar à consideração do trono, com base em
votação, ainda que não unânime, uma proposta no sentido de proteger comunidades
inclinadas, por sincera convicção, a normas religiosas modificadas, embora sem
detrimento dos que preferissem manter-se fiéis às antigas. Mas é absolutamente
proibido unificar-se em uma constituição religiosa fixa, de que ninguém tenha
publicamente o direito de duvidar, mesmo durante o tempo de vida de um homem, e
com isso por assim dizer aniquilar um período de tempo na marcha da humanidade no
caminho do aperfeiçoamento, e torná-lo infecundo e prejudicial para a posteridade. Um
homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por algum
tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento . Mas
renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa
ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. O que, porém, não é lícito a
um povo decidir com relação a si mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir
sobre ele, pois sua autoridade legislativa repousa justamente no fato de reunir a vontade
de todo o povo na sua. Quando cuida de toda melhoria, verdadeira ou presumida,
coincida com a ordem civil, pode deixar em tudo o mais que seus súditos façam por si
mesmos o que julguem necessário fazer para a salvação de suas almas. Isto não lhe
importa, mas deve apenas evitar que um súdito impeça outro por meios violentos de
trabalhar, de acordo com toda sua capacidade, na determinação e na promoção de si.
Causa mesmo dano a sua majestade quando se imiscui nesses assuntos, quando submete
à vigilância do seu governo os escritos nos quais seus súditos procuram deixar claras
suas concepções. O mesmo acontece quando procede assim não só por sua própria
concepção superior, com o que se expõe à censura: Ceaser non est supra grammaticos,
mas também e ainda em muito maior extensão, quando rebaixa tanto seu poder supremo
que chega a apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos em seu Estado contra os
demais súditos.
Se for feita então a pergunta: "vivemos agora uma época esclarecida
[<aufgeklärten>]"?, a resposta será: "não, vivemos em uma época de esclarecimento
. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados
em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em
matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimentosem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de que agora lhes foi
aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem
progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento  geral ou à
saída deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados. Considerada sob este
aspecto, esta época é a época do esclarecimento  ou o século de
Frederico.
Um príncipe que não acha indigno de si dizer que considera um dever não
prescrever nada aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em tal assunto plena
liberdade, que, portanto, afasta de si o arrogante nome de tolerância, é realmente
esclarecido [<aufgeklärt>] e merece ser louvado pelo mundo agradecido e pela
posteridade como aquele que pela primeira vez libertou o gênero humano da
menoridade, pelo menos por parte do governo, e deu a cada homem a liberdade de
utilizar sua própria razão em todas as questões da consciência moral. Sob seu governo
os sacerdotes dignos de respeito podem, sem prejuízo de seu dever funcional expor livre
e publicamente, na qualidade de súditos, ao mundo, para que os examinasse, seus juízos
e opiniões num ou noutro ponto discordantes do credo admitido. Com mais forte razão
isso se dá com os outros, que não são limitados por nenhum dever oficial. Este espírito
de liberdade espalha-se também no exterior, mesmo nos lugares em que tem de lutar
contra obstáculos externos estabelecidos por um governo que não se compreende a si
mesmo. Serve de exemplo para isto o fato de num regime de liberdade a tranqüilidade
pública e a unidade da comunidade não constituírem em nada motivo de inquietação. Os
homens se desprendem por si mesmos progressivamente do estado de selvageria,
quando intencionalmente não se requinta em conservá-los nesse estado.
Acentuei preferentemente em matéria religiosa o ponto principal do
esclarecimento
, a saída do homem de sua menoridade, da qual tem a culpa. Porque no
que se refere às artes e ciências nossos senhores não têm nenhum interesse em exercer a
tutela sobre seus súditos, além de que também aquela menoridade é de todas a mais
prejudicial e a mais desonrosa. Mas o modo de pensar de um chefe de Estado que
favorece a primeira vai ainda além e compreende que, mesmo no que se refere à sua
legislação, não há perigo em permitir a seus súditos fazer uso público de sua própria
razão e expor publicamente ao mundo suas idéias sobre uma melhor compreensão dela,
mesmo por meio de uma corajosa crítica do estado de coisas existentes. Um brilhante
exemplo disso é que nenhum monarca superou aquele que reverenciamos.

Mas também somente aquele que, embora seja ele próprio esclarecido
[<aufgeklärt>], não tem medo de sombras e ao mesmo tempo tem à mão um numeroso e
bem disciplinado exército para garantir a tranqüilidade pública, pode dizer aquilo que
não é lícito a um Estado livre ousar: raciocinais tanto quanto quiserdes e sobre
qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei! Revela-se aqui uma estranha e não
esperada marcha das coisas humanas; como, aliás, quando se considera esta marcha em
conjunto, quase tudo nela é um paradoxo. Um grau maior de liberdade civil parece
vantajoso para a liberdade de espírito do povo e, no entanto, estabelece para ela limites
intransponíveis; um grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto
quanto possa. Se, portanto, a natureza por baixo desse duro envoltório desenvolveu o
germe de que cuida delicadamente, a saber, a tendência e a vocação ao pensamento
livre, este atua em retorno progressivamente sobre o modo de sentir do povo (com o que
este se torna capaz cada vez mais de agir de acordo com a liberdade), e finalmente até
mesmo sobre os princípios do governo, que acha conveniente para si próprio tratar o
homem, que agora é mais do que simples máquina, de acordo com a sua dignidade.

sábado, 3 de agosto de 2013

O Amor é uma Falácia

O Amor é uma Falácia
M. Sulman
Reconhecer as falácias é por vezes difícil. Os argumentos falaciosos podem ter validade emocional, íntima, psicológica, mas não validade lógica. É importante conhecer os tipos de falácia para evitar armadilhas lógicas na própria argumentação e para analisar a argumentação alheia.
As falácias que são cometidas involuntariamente, designam-se por paralogismos; as que são produzidas de forma a confundir alguém numa discussão designam-se por sofismas.*

Eu era frio e lógico. Sutil, calculista, perspicaz, arguto e astuto - era tudo isso. Tinha um cérebro poderoso como um dínamo, preciso como uma balança de farmácia, penetrante como um bisturi. E tinha - imaginem só - dezoito anos.
Não é comum ver alguém tão jovem com um intelecto tão gigantesco. Tomem, por exemplo, o caso do meu companheiro de quarto na universidade, Pettey Bellows. Mesma idade, mesma formação, mas burro como uma porta. Um bom sujeito, compreendam, mas sem nada lá em cima. Do tipo emocional. Instável, impressionável. Pior do que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a mania é a própria negação da razão. Deixar-se levar por qualquer nova moda que apareça, entregar a alguma idiotice só porque os outros a segue, isto, para mim, é o cúmulo da insensatez. Petey, no entanto, não pensava assim.
Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal expressão de sofrimento no rosto que o meu diagnóstico foi imediato: apendicite.
- Não se mexa. Não tome laxante. Vou chamar o médico.
- Couro preto - balbuciou ele.
- Couro preto? - disse eu, interrompendo a minha corrida.
- Quero uma jaqueta de couro preto - disse.
Percebi que o seu problema não era físico, mas mental.
- Por que você quer uma jaqueta de couro preto?
- Eu devia ter adivinhado - gritou ele, socando a cabeça - Devia ter adivinhado que eles voltariam com o Charleston. Como um idiota, gastei todo o meu dinheiro em livros para as aulas e agora não posso comprar uma jaqueta de couro preto.
- Quer dizer - perguntei incrédulo - que estão mesmo usando jaquetas de couro preto outra vez?
- Todas as pessoas importantes da universidade estão. Onde você tem andado?
- Na biblioteca - respondi, citando um lugar não freqüentado pela pessoas importantes da Universidade.
Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto.
- Preciso conseguir uma jaqueta de couro preto - disse, exaltado - Preciso mesmo.
- Por que, Pety? Veja a coisa racionalmente. Jaquetas de couro preto são desconfortáveis. Impedem o movimento dos braços. São pesadas, são feias, são ...
- Você não compreende - interrompeu ele com impaciência - é o que todos estão usando. Você não quer andar na moda?
- Não - respondi, sinceramente.
- Pois eu sim - declarou ele - daria tudo para ter uma jaqueta de couro preto. Tudo.
Aquele instrumento de precisão, meu cérebro, começou a funcionar a todo vapor.
- Tudo? - perguntei, examinando seu rosto com olhos semicerrados.
- Tudo - confirmou ele, em tom dramático.
Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia onde encontrar uma jaqueta de couro preto. Meu pai usara um nos seus tempos de estudante; estava agora dentro de um malão, no sótão da casa. E, também por acaso, Petey tinha algo que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos ele tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua namorada, Polly Spy.
Eu há muito desejava Polly Spy. Apresso-me a esclarecer que o meu desejo não era de natureza emotiva. A moça, não há dúvida, despertava emoções, mas eu não era daqueles que se deixam dominar pelo coração. Desejava Polly para fins engenhosamente calculados e inteiramente cerebrais.
Cursava eu o primeiro ano de direito. Dali a algum tempo, estaria me iniciando na profissão. Sabia muito bem a importância que tinha a esposa na vida e na carreira de um advogado. Os advogados de sucesso, segundo as minhas observações, eram quase sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e inteligentes. Com uma única exceção, Polly preenchia perfeitamente estes requisitos.
Era bonita. Suas proporções ainda não eram clássicas, mas eu tinha certeza de que o tempo se encarregaria de fornecer o que faltava. A estrutura básica estava lá.
Graciosa também era. Por graciosa quero dizer cheia de graças sociais. Tinha porte ereto, a naturalidade no andar e a elegância que deixavam transparecer a melhor das linhagens. Á mesa, suas maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly no barzinho da escola comendo a especialidade da casa - um sanduíche que continha pedaços de carne assada, molho, castanhas e repolho - sem nem sequer umedecer os dedos.
Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para o oposto. Mas eu confiava em que, sob a minha tutela, haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos valia a pena tentar. Afinal de contas, é mais fácil fazer uma moça bonita e burra ficar inteligente do que uma moça feia e inteligente ficar bonita.
- Petey - perguntei - você ama Polly Spy?
- Eu acho que ela é interessante - respondeu - mas não sei se chamaria isso de amor. Por quê?
- Você - continuei - tem alguma espécie de arranjo formal com ela? Quero dizer, vocês saem exclusivamente um com o outro?
- Não. Nos vemos seguidamente. Mas saímos os dois com outros também. Por quê?
- Existe alguém - perguntei - algum outro homem que ela goste de maneira especial?
- Que eu saiba não. Por quê?
Fiz que sim com a cabeça, satisfeito.
- Em outras palavras, a não ser por você, o campo está livre, é isso?
- Acho que sim. Aonde você quer chegar?
- Nada, anda - respondi com inocência, tirando minha mala de dentro do armário.
- Onde é que você vai? - quis saber Petey.
- Passar o fim de semana em casa.
Atirei algumas roupas dentro da mala.
- Escute - disse Petey, apegando-se com força ao meu braço - em casa, será que você não poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me emprestar para comprar uma jaqueta de couro preto?
- Posso até fazer mais do que isso - respondi, piscando o olho misteriosamente. Fechei a mala e saí.
- Olhe - disse a Petey, ao voltar na segunda feira de manhã. Abri a mala e mostrei o enorme objeto cabeludo e fedorento que meu pai usara ao volante de seu Stutz Beacat em 1955.
- Santo Pai - exclamou Petey com reverência. Passou as mãos na jaqueta e depois no rosto.
- Santo Pai - repetiu, umas quinze ou vinte vezes.
- Você gostaria de ficar com ele? - perguntei.
- Sim - gritou ele, apertando a jaqueta contra o peito. Em seguida, seus olhos assumiram um ar precavido. - O que quer em troca?
- A sua namorada - disse eu, não desperdiçando palavras.
- Polly? - sussurrou Petey, horrorizado. - Você quer a Polly?
- Isso mesmo.
Ele jogou a jaqueta pra longe.
- Nunca - declarou resoluto.
Dei de ombros.
- Tudo bem. Se você não quer andar na moda, o problema é seu.
Sentei-me numa cadeira e fingi que lia um livro, mas continuei espiando Petey, com o rabo dos olhos. Era um homem partido em dois. Primeiro olhava para a jaqueta com a expressão de uma criança desamparada diante da vitrine de uma confeitaria. Depois dava-lhe as costas e cerrava os dentes, altivo. Depois voltava a olhar para a jaqueta. Com uma expressão ainda maior de desejo no rosto. Depois virava-se outra vez, mas agora sem tanta resolução. Sua cabeça ia e vinha, o desejo ascendendo, a resolução descendendo. Finalmente, não se virou mais: ficou olhando para a jaqueta com pura lascívia.
- Não é como se eu estivesse apaixonado por Polly - balbuciou. - Ou mesmo namorando sério, ou coisa parecida.
- Isso mesmo - murmurei.
- Afinal, Polly significa o que para mim, ou eu pra ela?
- Nada - respondi.
- Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco. Só isso.
- Experimente a jaqueta - disse eu.
Ele obedeceu. A jaqueta ficou bem larga, passando da cintura. Ele parecia um motoqueiro mal vestido da década de cinqüenta.
- Serve perfeitamente - disse, contente.
Levantei-me da cadeira e perguntei, estendendo a mão.
- Negócio feito?
Ele engoliu a seco.
- Feito - disse, e apertou a minha mão.
Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte.
O Primeiro programa teria o caráter de pesquisa preparatória. Eu desejava saber o trabalho que me esperava para elevar a sua mente ao nível desejado. Levei-a para jantar.
- Puxa, que jantar interessante! - disse ela, quando saímos do restaurante. Fomos ao cinema.
- Puxa, que filme interessante! - disse ela, quando saímos do cinema.
Levei-a para casa.
- Puxa, que noite interessante - disse ela, ao nos despedirmos.
Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu subestimara gravemente as proporções da minha tarefa. A ignorância daquela moça era aterradora. E não seria o bastante apenas instruí-la. Era preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento se me afigurava gigantesco, e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Petey. Mas aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos e na maneira como entrava numa sala ou segurava uma faca, um garfo, e decidi tentar novamente.
Procedi, como sempre, sistematicamente. Dei-lhe um curso de Lógica. Acontece que, como estudante de direito, eu freqüentava na ocasião aulas de Lógica, e portanto tinha tudo na ponta da língua.
- Polly - disse eu, quando fui buscá-la para o nosso segundo encontro. - Esta noite vamos até o parque conversar.
- Ah, que interessante! - respondeu ela.
Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria difícil encontrar alguém tão bem disposta para tudo.
Fomos até o parque, o local de encontros da universidade, nos sentamos debaixo de uma árvore, e ela me olhou cheia de expectativa.
- Sobre o que vamos conversar? - perguntou.
- Sobre Lógica.
Ela pensou durante alguns segundos e depois sentenciou:
- Interessante!
- A Lógica - comecei, limpando a garganta - é a ciência do pensamento. Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias mais comuns da Lógica. É o que vamos abordar hoje.
- Interessante! - exclamou ela, batendo palmas de alegria.
Fiz uma careta, mas segui em frente, com coragem.
- Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto Simpliciter.
- Vamos - animou-se ela, piscando os olhos com animação.
Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa generalização não qualificada. Por exemplo: o exercício é bom, portanto todos devem se exercitar.
- Eu estou de acordo - disse Polly, fervorosamente. - Quer dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é, desenvolve o corpo e tudo.
- Polly - disse eu, com ternura - o argumento é uma falácia. Dizer que o exercício é bom é uma generalização não qualificada. Por exemplo: para quem sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm ordem de seus médicos para não exercitarem. É preciso qualificar a generalização. Deve-se dizer: o exercício é geralmente bom, ou é bom para a maioria das pessoas. Do contrário está-se cometendo um Dicto Simpliciter. Você compreende?
- Não - confessou ela. - Mas isso é interessante. Quero mais. Quero mais!
- Será melhor se você parar de puxar a manga da minha camisa - disse eu e, quando ela parou, continuei:
- Em seguida, abordaremos uma falácia chamada generalização apressada. Ouça com atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar francês, Petey Bellows não sabe falar francês. Devo portanto concluir que ninguém na universidade sabe falar francês.
- É mesmo? - espantou-se Polly. - Ninguém?
Contive a minha impaciência.
- É uma falácia, Polly. A generalização é feita apressadamente. Não há exemplos suficientes para justificar a conclusão.
- Você conhece outras falácias? - perguntou ela, animada. - Isto é até melhor do que dançar.
- Esforcei-me por conter a onda de desespero que ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela moça, absolutamente nada. Mas não sou outra coisa senão persistente. Continuei.
- A seguir, vem o Post Hoc. Ouça: Não levemos Bill conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto, começa a chover.
- Eu conheço uma pessoa exatamente assim - exclamou Polly. - Uma moça da minha cidade, Eula Becker. Nunca falha. Toda vez que ela vai junto a um piquenique...
- Polly - interrompi, com energia - é uma falácia. Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo em Post Hoc, se puser a culpa na Eula Becker.
- Nunca mais farei isso - prometeu ela, constrangida. - Você está bravo comigo?
- Não Polly - suspirei. - Não estou bravo.
- Então conte outra falácia.
- Muito bem. Vamos experimentar as premissas contraditórias.
- Vamos - exclamou ela alegremente.
Franzi a testa, mas continuei.
- Aí vai um exemplo de premissas contraditórias. Se Deus pode fazer tudo, pode fazer uma pedra tão pesada que ele mesmo não conseguirá levantar?
- É claro - respondeu ela imediatamente.
- Mas se ele pode fazer tudo, pode levantar a pedra.
- É mesmo - disse ela, pensativa. - Bem, então eu acho que ele não pode fazer a pedra.
- Mas ele pode fazer tudo - lembrei-lhe.
Ela coçou a cabeça linda e vazia.
- Estou confusa - admitiu.
- É claro que está. Quando as premissas de um argumento se contradizem, não pode haver argumento. Se existe uma força irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?
- Conte outra dessas histórias interessantes - disse Polly, entusiasmada.
Consultei o relógio.
- Acho melhor parar por aqui. Levarei você em casa, e lá pensará no que aprendeu hoje. Teremos outra sessão amanhã.
Deixei-a no dormitório das moças, onde ela me assegurou que a noitada fora realmente interessante, e voltei desanimadamente para o meu quarto. Petey roncava sobre sua cama, com a jaqueta de couro encolhida a seus pés. Por alguns segundos, pensei em acordá-lo e dizer que ele podia ter Polly de volta. Era evidente que o meu projeto estava condenado ao fracasso. Ela tinha, simplesmente, uma cabeça à prova de Lógica.
Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que não perder outra? Quem sabe se em alguma parte daquela cratera de vulcão adormecido que era a mente de Polly, algumas brasas ainda estivessem vivas. Talvez, de alguma maneira, eu ainda conseguisse abaná-las até que flamejasse. As perspectivas não eram das mais animadoras, mas decidi tentar outra vez.
Sentado sob uma árvore, na noite seguinte, disse:
- Nossa primeira falácia desta noite se chama ad misericordiam.
Ela estremeceu de emoção.
- Ouça com atenção - comecei - Um homem vai pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais as suas qualificações, o homem responde que tem uma mulher e dois filhos em casa, que a mulher e aleijada, as crianças não tem o que comer, não tem o que vestir nem o que calçar, a casa não tem camas, não há carvão no porão e o inverno se aproxima.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de Polly.
- Isso é horrível, horrível! - soluçou.
- É horrível - concordei - mas não é um argumento. O homem não respondeu à pergunta do patrão sobre as suas qualificações. Ao invés disso, tentou despertar a sua compaixão. Cometeu a falácia de ad misericordiam. Compreendeu?
Dei-lhe um lenço e fiz o possível para não gritar enquanto ela enxugava os olhos.
- A seguir - disse, controlando o tom da voz - discutiremos a falsa analogia. Eis um exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar seus livros durante os exames. Afinal, os cirurgiões levam as radiografias para se guiarem durante uma operação, os advogados consultam seus papéis durante um julgamento, os construtores têm plantas que os orientam na construção de uma casa. Por quê, então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
- Pois olhe - disse ela entusiasmada - está e a idéia mais interessante que eu já ouvi há muito tempo.
- Polly - disse eu com impaciência - o argumento é falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os construtores não estão fazendo teste para ver o que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são completamente diferentes e não se pode fazer analogia entre elas.
- Continuo achando a idéia interessante - disse Polly.
- Santo Cristo! - murmurei, com impaciência.
- A seguir, tentaremos a hipótese contrária ao fato.
- Essa parece ser boa - foi a reação de Polly.
- Preste atenção: se Madame Curie não deixasse, por acaso, uma chapa fotográfica numa gaveta junto com uma pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da existência do rádio.
- É mesmo, é mesmo - concordou Polly, sacudindo a cabeça. - Você viu o filme? Eu fiquei louca pelo filme. Aquele Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me faz vibrar.
- Se conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos - disse eu, friamente - gostaria de lembrar que o que eu disse é uma falácia. Madame Curie teria descoberto o rádio de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita coisa podia acontecer. Não se pode partir de uma hipótese que não é verdadeira e tirar dela qualquer conclusão defensável.
- Eles deviam colocar o Walter Pidgeon em mais filmes - disse Polly - Eu quase não vejo ele no cinema.
Mais uma tentativa, decidi. Mas só mais uma. Há um limite para o que podemos suportar.
- A próxima falácia é chamada de envenenar o poço.
- Que engraçadinho! - deliciou-se Polly.
- Dois homens vão começar um debate. O primeiro se levante e diz: ‘o meu oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível acreditar numa só apalavra do que ele disser’. Agora, Polly, pense bem, o que está errado?
Vi-a enrugar a sua testa cremosa, concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência - o primeiro que vira - surgiu nos seus olhos.
- Não é justo! - disse ela com indignação - Não é justo. O primeiro envenenou o poço antes que os outros pudesse beber dele. Atou as mãos do adversário antes da luta começar... Polly, estou orgulhoso de você.
- Ora - murmurou ela, ruborizando de prazer.
- Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só requer concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos repassar tudo o que aprendemos até agora.
- Vamos lá - disse ela, com um abano distraído da mão.
Animado pela descoberta de que Polly não era uma cretina total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo o que dissera até ali. Sem parar citei exemplos, apontei falhas, martelei sem dar trégua. Era como cavar um túnel. A princípio, trabalho duro e escuridão. Não tinha idéia de quando veria a luz ou mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro, até que fui recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta foi se alargando até que o sol jorrou para dentro do túnel, clareando tudo.
Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera a pena. Eu transformara Polly em uma lógica, e a ensinara a pensar. Minha tarefa chegara a bom termo. Fizera dela uma mulher digna de mim. Está apta a ser minha esposa, uma anfitriã perfeita para as minhas muitas mansões. Uma mãe adequada para os meus filhos privilegiados.
Não se deve deduzir que eu não sentia amor por ela. Muito pelo contrário. Assim como Pigmaleão amara a mulher perfeita que moldara para si, eu amava a minha. Decidi comunicar-lhe os meus sentimentos no nosso encontro seguinte. Chegara a hora de mudar as nossas relações, de acadêmicas para românticas.
- Polly, disse eu, na próxima vez que nos sentamos sob a árvore - hoje não falaremos de falácias.
- Puxa! - disse ela, desapontada.
- Minha querida - prossegui, favorecendo-a com um sorriso - hoje é a sexta noite que estamos juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvidas de que formamos um bom par.
Generalização apressada - exclamou ela, alegremente.
- Perdão - disse eu.
Generalização apressada - repetiu ela. - Como é que você pode dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada, contente. Aquela criança adorável aprendera bem as suas lições.
- Minha querida - disse eu, dando um tapinha tolerante na sua mão - cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para saber se ele é bom ou não.
Falsa Analogia - disse Polly prontamente - eu não sou um bolo, sou uma pessoa.
Dei outra risada, já não tão contente. A criança adorável talvez tivesse aprendido a sua lição bem demais. Resolvi mudar de tática. Obviamente, o indicado era uma declaração de amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto o meu potente cérebro selecionava as palavras adequadas. Depois reiniciei.
- Polly, eu te amo. Você é tudo no mundo pra mim, é a lua e a estrelas e as constelações no firmamento. For favor, minha querida, diga que será minha namorada, senão a minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios.
Pronto, pensei; está liquidado o assunto.
Ad misericordiam - disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu não era Pigmaleão; era Frankenstein, e o meu monstro me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente contra o pânico que ameaçava invadir-me. Era preciso manter a calma a qualquer preço.
- Bem, Polly - disse, forçando um sorriso - não há dúvida que você aprendeu bem as falácias.
- Aprendi mesmo - respondeu ela, inclinando a cabeça com vigor.
- E quem foi que ensinou a você, Polly?
- Foi você.
- Isso mesmo. E portanto você me deve alguma coisa, não é mesmo, minha querida? Se não fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia.
Hipótese Contrária ao Fato - disse ela sem pestanejar.
Enxuguei o suor do rosto.
- Polly - insisti, com voz rouca - você não deve levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito bem que o que aprendemos na escola nada tem a ver com a vida.
Dicto Simpliciter - brincou ela, sacudindo o dedo na minha direção.
Foi o bastante. Levantei-me num salto, berrando como um touro.
- Você vai ou não vai me namorar?
- Não vou - respondeu ela.
- Por que não? - exigi.
- Porque hoje à tarde eu prometi a Petey Bellows que eu seria a namorada dele.
Quase caí para trás, fulminado por aquela infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois de apertar a minha mão!
- Aquele rato! - gritei, chutando a grama. - Você não pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor. Um rato.
Envenenar o poço - disse Polly - E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.
Com uma admirável demonstração de força de vontade, modulei a minha voz.
- Muito bem - disse - você é uma lógica. Vamos olhar as coisas logicamente. Como pode preferir Petey Bellows? Olhe para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um homem com futuro assegurado. E veja Petey: um maluco, um boa vida, um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não no dia seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para namorar Petey Bellows?
- Posso sim - declarou Polly - Ele tem uma jaqueta de couro preto.

in Sulman, M. (1973): As calcinhas cor-de-
rosas do Capitão, Porto Alegre: Ed. Globo)

*Wikipedia